Ombros repousados

O Mundo é irónico. E mais irónico ainda é o Universo. Esse misto de constelações misteriosas que nos deixam a nós, comuns mortais, de orelhas fitadas numa tentativa de descobrir o que paira sobre as nossas cabeças. 
Tu existes e, consequentemente, eu (sobre)vivo. Também não é isto uma forma de ironia? Talvez a zombaria mais avassaladora; o terrível escárnio que nos entrega ao trabalho árduo de esvoaçar sobre as diversas almas que a morte suga ao longo da vida. 
Aqui estou eu, a planar sobre uma existência que não possuo, sobre um corpo que está longe de ser meu, lado a lado com bens psíquicos que de todo não agarro. 
Desço à estrada em que te inventas, sentado na beira de um passeio a mirar o pôr-do-sol entre duas casas vitorianas, esperando que pouse sobre o teu ombro o rumo que outros tecem por ti, lá em cima, num vazio ironicamente misterioso do Universo. Pois o tempo teceu-me a mim para tranquilizar o teu ombro mais cansado, podendo assim repousares no ombro leve que acompanha a vida. E digo-te, baixinho, ao ouvido, que o anoitecer está tão perto como a mudança que te aguarda ao culminar dos astros, para que acordes com a Lua e abras os olhos que iluminam a cidade escurecida em que dormitas. E essa tua voz que ecoa por entre as montanhas e os mares por onde passa a estrela do dia, é a tua gloriosa salvação. Esse timbre doce mas arrebatador que teceram só para ti, para seres ouvido pelo Mundo fora, para que tenhas um escudo que numa fracção de segundo se transforma numa espada apta a atravessar corações e almas intangíveis. 
E tu murmuras: pedes aos espíritos que te cercam acima do cabelo emaranhado com a água salgada que outrora te arrepiou a pele, para que nunca rompam o fio que me liga à tua espádua enfadada. Mas tu não sabes quem eu sou – não me conheces as rugas nem as linhas da mão encarquilhadas. 
Mas sentes, como que num déja vu, o cheiro a jasmim que te prende o pescoço em forma de colar. Esse cheiro que te conforta, que te embala à noite, em sonhos profundos. Esse cheiro que te diz, que enquanto o sentires, eu vou olhar sempre por ti.

Comentários

Rita disse…
Este texto, querida Raquel, está um miminho, uma perfeição, uma mostra de talento da tua parte!
Adorei e foi mais coisas que mais gostei de ler. :)
Algumas das tuas expressões inspiraram-me. Estou-te grata.

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