E de repente

Podias-me pedir para ir ter contigo ao Sul, onde o tempo corre mais devagar e as raparigas parecem nunca estar cansadas. E eu ia, como vão os pássaros no início do Outono, antes das árvores se despirem e o frio nos gelar os ossos. Isto sou eu a sonhar, porque estás aqui, andas todos os dias nesta cidade como eu, e, tal como eu, estás farto e cansado dela, e se calhar é por isso que quando não temos vontade de estar com mais ninguém, arranjamos sempre tempo um para o outro e juntos falamos de coisas sérias enquanto nos vamos rindo do mundo e de nós próprios.
T
u podias ser eu, se fosse rapaz e tivesse nascido há vinte anos. E eu também podia ser tu, porque amo e sofro da mesma forma, porque tenho os olhos quase da mesma cor e corpo quase com o mesmo peso e um coração igual, tirado a fotocópia, com aurículas e ventrículos como todos os outros, mas um bocadinho maior do que é habitual. Isto sou eu a imaginar, porque nunca vi, não há radiografias ao coração e se houver, tenho medo de as ver, pode ser que o médico nos diga – a ti ou a mim, tanto faz – que temos um coração tão grande que um dia pode rebentar no peito e não dava jeito nenhum, pois não?
Olho para ti e vejo um pouco do que já fui, os teus sonhos são parecidos com os meus, as tuas mãos têm a temperatura das minhas. Lembras-me uma decalcomania daquelas que se colam com água e depois nunca mais saem e eu gosto que faças parte dos meus dias e gosto de fazer parte dos teus e gosto ainda mais de saber que pode ser para toda a vida.
Os amigos não se fazem, reconhecem-se, disse o poeta que escreveu e de repente, não mais que de repente... de repente, tudo pode acontecer, basta um instante, as pessoas cruzam-se por acaso para nunca mais se separarem, e é então que percebemos que nada é por acaso, que afinal estar naquele sítio àquela hora era apenas a forma de nos aproximarmos e ficarmos mais ricos, mais cheios, melhores.
Tu já sabias que ia ser assim, tens o olhar dos adivinhos e a intuição dos grandes sábios, mas eu não fazia ideia nenhuma e por isso vou saboreando o presente como este presente que a vida me deu, a tua amizade, o teu tempo, a tua atenção, a tua discrição, a tua lealdade, a tua estima e preocupação, o teu bem-querer, o teu conforto, pensando que a vida é grata e atenta e nos vai dando o que precisamos, basta estar atento aos sinais e saber segui-los com cuidado e humildade, aceitando os desvios e enfrentando os inevitáveis precipícios, descansando sempre que é preciso, sem nunca parar, sem nunca desistir, sem entregar as armas nem o coração.
Daqui a dez ou vinte ou trinta anos, terás perdido o cheiro a leite da pele, eu terei rugas e uma cabeça coroada de cabelos brancos, mas quero que saibas que, quando não tiveres força para estar com mais ninguém, podes sempre vir ter comigo e descansar nas minhas histórias que te fazem rir e me fazem pensar que ainda tenho alguma graça, mesmo que o tempo me esbata os sonhos e me roube os ideais. E quero que venhas sempre com esse olhar de gato e esse andar de menino, ensinar-me coisas novas e descobrir comigo livros, discos, filmes e frases e viagens ao sul, saboreando o presente que a vida nos deu um ao outro quando nos cruzámos e decidimos que seria bom morar no coração um do outro.

Margarida Rebelo Pinto

Comentários

Daniela. disse…
Eu adoro crónicas de Margarida Rebelo Pinto *.*
amei este texto da mrp!
um beijinho*
Joana Martins disse…
mas os medos tem tendencia pra serem esquecidos ao longo do tempo. mas quando ainda é tudo recente, é dificil esquecer esses pormenores.
é mesmo linda, alias, sao todas :p

e este texto, como todos os da margarida rebelo pinto, esta fantastico

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